Filme ‘O Confeiteiro’ narra amor gay nascido da relação com a comida

filmesgays outubro 8, 2019

Com pouquíssimas informações colhidas ao longo da trama, o laconismo do protagonista do filme “O Confeiteiro”, do diretor israelense Ofir Raul Graizer, revela outra vertente da falta. “Não só aquela do luto, mas uma falta constitutiva de cada um”, explica o psicanalista Tiago da Silva Porto, que diz ter se sentido numa sessão de análise assistindo ao filme.

O drama abriu o novo Ciclo Cinema e Psicanálise realizado em uma parceria da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) com o Museu da Imagem e do Som e a Folha.

O pré-concorrente de Israel ao Oscar de melhor filme estrangeiro do ano passado conta a história de Thomas, um confeiteiro alemão que mantém um caso com Oren, israelense pai de família que frequentemente deixa o país dele a trabalho. Com a morte inesperada deste, Thomas vai a Israel à procura da família de seu amante.

É na tentativa de preencher esse buraco que, segundo o psicanalista, se pode analisar a sexualidade dos personagens. “É como a falta instaura o desejo”, um assunto que já foi largamente teorizado na psicanálise. Para Porto, um dos momentos-chave do filme acontece quando o protagonista nega ser sozinho e diz ser necessário se contentar com o que se tem. “Está imerso nessa fala que é importante não desejar o que não se tem. Mas o que fazer quando o desejo irrompe de nós?”

O que fica mais evidente quando Thomas descreve o que tem: a casa, o amante e o trabalho. De fato, a primeira é abandonada para a empreitada dele, o segundo, mesmo se não tivesse acabado em fim trágico, é fugidio e incerto, já que não é possível saber o desejo do outro. Na visão do psicanalista, sobra então o ofício.

“A sexualidade do confeiteiro está na potência do trabalho dele.” Para a psicanálise, o sentido de trabalho é aquilo que se imprime no mundo e o transforma. No mundo do protagonista, essa comunicação se dá pela comida, já que é por ela que ele seduz ou desconta sua culpa. “O trabalho de Thomas é a libido em exercício dele. A cena de sexo se dá sobre a massa. Aqui, a massa suporta o gozo, a dor e é transformadora.”

O cineasta Fábio Kow, que também participou do debate, ressaltou que a comida era fundamental em todo primeiro contato que Thomas tinha com outro personagem, seja com o amante (pela sedução), com a mulher do amante (pelo choque culinário) ou com a mãe do amante (pela confidência).

Kow, que é judeu, destacou a sensibilidade do diretor do filme em tratar a religião. Tanto por não esconder a intolerância religiosa da sociedade israelita, quanto por retratar um respeito à crença alheia por parte de personagens, como a mulher do amante, que não são tão movidos pela fé. “Em uma cena, ela pergunta ao filho: ‘você quer fazer a reza?’. É bonito ela dar essa opção, porque ele não é obrigado. Quando ele aceita, os dois fazem juntos. Achei ela menos regrada, e muito mais judia na essência.”

Outro cuidado que Kow destaca é o fato de que, apesar dos dois homens do filme serem bissexuais, a narrativa questiona falta e perda, mas nunca a sexualidade deles. “São histórias como essa que fazem com que as pessoas se acostumem que isso é algo do nosso cotidiano.”

Ao naturalizar esses debates, a mesa, composta também pela psicanalista Luciana Saddi, concorda que nem a questão de gênero nem a religião são tema central do filme. Nos ensaios sobre sexualidade de Sigmund Freud, ele diz que “o objeto é contingencial”. “Talvez Thomas não esteja exatamente atrás de um gênero, mas de algo que tape esse vazio”, afirma Porto.

É daí que surge a conexão que Kow considera a mais importante. Depois que a mulher do amante se dá conta de quem Thomas é de fato, “ela termina o filme como ele começa”. Ambos vão em busca de algo que sabem que existe, mas não conhecem totalmente. E, assim, um passa a entender a dor do outro.

“Precisamos do outro inexoravelmente. E esse outro nunca é garantido ou permanente. Diante dessa tragicidade, temos a libido como capacidade de transformar a vida em algo mais palatável”, conclui o psicanalista.

O próximo encontro acontecerá no dia 16 de abril às 19h, com a exibição do filme “Kiki – Os Segredos do Desejo”, no Museu da Imagem e do Som (av. Europa, 158, Jardim Europa, São Paulo). É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.

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